domingo, 10 de agosto de 2014

O torturador e o ladrão

Por Eugênio Bucci 
Reproduzido do Estado de S. Paulo,
 
As costeletas adensadas do delegado Sérgio Paranhos Fleury deslocavam o centro de gravidade nos contornos daquele semblante obscuro. A região acima da testa se dissolvia na sombra, em fade out, enquanto os maxilares se fixavam como chumbo na base do rosto, daí descendo sobre os ombros. Eram ombros em declive, no formato de uma seta. Ou melhor, de uma gota. O homem era uma gota gigantesca, descerebrada, uma gota de metal e vísceras. Nas fotos em preto e branco vemos seus olhos, ora amortecidos, ora mortíferos, refletindo não a alma, mas as vísceras. Fleury dedicou a vida, com muito suor e notável determinação, a perseguir, torturar e matar cidadãos indefesos. Imortalizou-se como o ícone maior da tortura no Brasil.
Que tenha sido também ladrão nas horas vagas não é o de menos. Nestes tempos em que a memória do golpe de 1964 ocupa o noticiário, há uma leitura obrigatória, que narra em detalhes um episódio em que o delegado tomou para si o que não lhe pertencia. O nome do livro é Minha Vida de Terrorista (São Paulo: Prumo, 2013), de Carlos Knapp.
Eis aqui um resumo do episódio. Nos anos 1960, Knapp era uma estrela ascendente da publicidade paulistana, dono da célebre Oficina de Propaganda. Usufruía os luxos e confortos que o dinheiro pode comprar, num endereço elegante nos Jardins. Tinha um jipão e uma Mercedes. Não era guerrilheiro, não deu tiro em ninguém, mas conhecia e admirava o pessoal da luta armada, a quem prestava pequenos favores, por assim dizer. Integrava a chamada “rede de apoio” da guerrilha.
No início de junho de 1969, após ter socorrido um militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) ferido num assalto, caiu na mira da repressão. Em questão de semanas estava instalado num quarto em Montevidéu, com uma carteira de identidade falsa, à espera de um passaporte, também falso, que o levaria à Europa. Tinha consigo umas peças de roupa. Quanto ao mais, deixara tudo o que tinha no Brasil: os filhos, os livros, seus papéis, os amigos, o saldo bancário, o clube Harmonia (onde jogava tênis na hora do almoço) e os dois carangos bem ao gosto da Jovem Guarda. Cada coisa tomou um rumo improvável, cada qual à sua maneira. A Mercedes virou butim nas mãos de Fleury, que a roubou como quem se serve de amendoim durante a espera num restaurante.
Em “benefício da boa causa”
Bem-humorado, Knapp conta que foi a única pessoa na face da Terra a lamentar a morte do notório torturador: gostaria de ter movido contra ele um processo por apropriação indébita, o que nunca foi possível. Não falta humor à narrativa de Minha Vida de Terrorista, embora a história seja traumática. Assim como não perde a ironia para se lembrar da morte de Fleury (que morreu afogado no dia 1º de maio de 1979, aos 46 anos, ao lado de sua lancha novinha, em Ilhabela), o autor sabe rir de seus próprios desencontros e das trapalhadas de algumas das ações da ALN. O relato sobre os dias em que Carlos Marighella se hospedou em sua casa, na Rua Sofia, é feito com graça e delicadeza. O líder máximo da guerrilha, já declarado o “inimigo público número 1”, gostava de sair à rua e para se disfarçar cobria a calva com uma peruca avermelhada, que chamava mais atenção do que uma melancia no pescoço. Lá pelas tantas, começou a insistir com o dono da casa para que pusessem em prática um plano ultrarrevolucionário: assaltar os ricos que jogavam baralho no clube Harmonia.
Carlos Knapp só conseguiu demover seu hóspede dessa ideia quando o convenceu de que os frequentadores da jogatina eram todos falidos. Meses depois, quando Fleury comandou a emboscada que matou Marighella em São Paulo, no dia 4 de novembro de 1969, Knapp estava no exílio, tentando reagrupar os cacos que haviam sobrado de seu destino. Marighella foi um assaltante sem nunca ter sido ladrão. Fleury foi ladrão sem ter nunca sido assaltante. E ele, Knapp, queria encontrar emprego, trabalhar, reaver seus filhos e ganhar a vida honestamente. Não queria nada com a ditadura. Queria distância dos torturadores. E dos ladrões.
Hoje, aos 85 anos, morador de uma pequena casa de campo não muito longe de São Paulo, no convívio dos filhos, o autor de Minha Vida de Terrorista sela o reencontro em paz com a sua biografia – uma linha reta, apesar de tantos descaminhos. Carlos Knapp foi (e é) gauche na vida, isso sim. Jamais se dobrou moralmente à lógica de um regime que torturou e matou compatriotas honestos. Do mesmo modo, não saiu por aí batendo palmas para aqueles que, do alto de um posto de autoridade, aproveitam para se apossar do alheio.
O Brasil vive um momento impressionante de balanço histórico e de reflexão sobre os princípios e os meios da política. Embora tardiamente, a mentalidade média vai aprendendo que a tortura não vale, é inaceitável (ainda que presos comuns sofram com ela diariamente, até hoje; ainda que uma multidão de Amarildos lote túmulos anônimos). A cultura política ainda não assimilou, contudo, que subtrair dinheiro público ou bens privados – sob a alegação de usá-lo em “benefício da boa causa” – constitui um crime igualmente torpe, igualmente inaceitável.
A corrupção como método
Ali pelos idos de 1968, 1969, alguns abastados diziam que a tortura era abjeta, mas necessária para salvar o Brasil do risco da tirania comunista. Hoje são incontáveis os que dizem que os dinheiros “não contabilizados” constituem um incremento indispensável se quisermos mesmo “mudar o Brasil”. Estão aí, para todos os lados, em todos os partidos, os escândalos financeiros comprometendo gente que se julga predestinada ao panteão dos heróis da pátria. Acham que o dinheiro da corrupção é troco, assim como era troco o automóvel de um exilado.
Oxalá, daqui a 50 anos, a mentalidade brasileira se livre dessa chaga que é tolerar a corrupção como método, assim como se vai livrando, só hoje, da vergonha extrema de ter abençoado a tortura.
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM

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