sexta-feira, 14 de setembro de 2012


Nos terreiros, adeptos do candomblé professam uma fé que traduz como nenhuma outra a herança negra em Pernambuco

Publicado em 03/09/2012, às 11h44

Bruna Cabral


Uma fé preta como a pele dos africanos que gastaram a vida semeando a prosperidade alheia desembarcou no Brasil português para nunca mais arredar daqui seus pés descalços. Ao povo exilado e subtraído de sua nação, restou o credo. Uma ruidosa e colorida liturgia que fortaleceu corações e braços para carregar de geração em geração a cultura sagrada que nunca deitou no berço esplêndido da história. O candomblé se fez imperecível na oralidade. Atravessou séculos de desprezo e até hoje seus filhos precisam lutar por liberdade e respeito. Nem de macumba, nem de magia negra, terreiro é sinônimo de amor e resistência a favor de uma causa que até na própria África já dá sinais de cansaço.
"Tem muito africano virando evangélico. Estamos ilhados. Por isso faço questão de perpetuar nossa história. Criei um museu, deixo como posso nossa tradição para a posteridade", diz o aguerrido Ivo de Xambá, pai de santo do terreiro Ilê Axé Oyá Meguê, uma casa de Iansã. Filho de Oxum, Ivo tem porte nobre, oratória impecável e uma enorme responsabilidade.
É ele que comanda os dois hectares de gente que compreendem a Xambá, uma vila localizada no Bairro de São Bento, Olinda, reconhecida em 2006 pelo Ministério da Cultura como um dos raríssimos exemplares de quilombo urbano do País. "No Xambá, todo mundo é da mesma família", diz Ivo, explicando que os elos naquelas redondezas são estabelecidos mais por religião que por genética. Não que isso seja novidade. "Historicamente, foi o terreiro que ressocializou o negro arrancado de sua gente. E deu a ele o direito de ter família de novo. Por isso nos chamamos de pai, mãe, filho."
Naqueles quarteirões, vivem mais de 60 pessoas livres para ir e vir, crer e viver como bem entenderem. Quase todos, no entanto, já foram batizados no candomblé por livre e espontânea vontade e escolhidos pelo santo para cozinhar ou tocar ou cuidar das oferendas. "É feito uma colmeia, da rainha ao operário, todo mundo tem uma tarefa", compara Ivo, estivador aposentado, que virou líder espiritual há 9 anos, substituindo Mãe Biu, sua genitora de fato, após sua morte. Foi a intrépida ialorixá que conseguiu reabrir o terreiro, fundado nos idos de 1930, por Maria Oyá, depois de 11 anos de silêncio. "Sofremos muita perseguição política de 1939 a 1950."
Convicto de seu sacerdócio, Ivo de Xambá diz que sua missão é fazer o intermédio entre humanos e orixás. "Temos nossas obrigações a cumprir. Quartas e sábados, por exemplo, são dias de oferenda. E o domingo é dia de toque. No resto da semana, estamos abertos para receber nossos filhos, aconselhar, cuidar e dar munição para cada um enfrentar suas batalhas." Isso sem falar em suas atribuições laicas. "Temos um papel político e social também, de defender e encaminhar nossos filhos. Por isso fazemos oficinas culturais para crianças e jovens aqui no terreiro. O grupo Bongá e o Afoxé Ilê Xambá, por exemplo, são da casa."
Desconhecidos são muito bem-vindos em festividades do terreiro, como o coco, compromisso sagrado todo 29 de junho. "Todo mundo pode e deve vir, desde que respeite nossa religião. O branco tem mania de dançar nossa música, comer nossa comida, mas não quer respeitar nossa crença."
Um preconceito que já foi bem mais devastador. A filha de Ivo, Adriana Paraíso, 33, conta que era orientada a não comentar por aí sobre sua religião. "Tinha medo." Mas, dentro de casa, achava tudo muito natural. "Enquanto as cerimônias estavam acontecendo na sala, eu me juntava com meus primos e ficava brincando de incorporar espíritos. Até o dia em que começamos a levar aquilo a sério." Hoje em dia, Adriana tem o ofício que herdou da avó: o de abaluaê, cuja missão é cuidar e curar. E para fechar suas próprias feridas, ela fez questão de ensinar os filhos a ter orgulho do candomblé. "O terreiro é nossa história e nossa família."

No bairro de Água Fria, uma história parecida começou a ser contada de pai para filho ainda mais cedo. Foi nos idos de 1875 que o terreiro Obá Ogunté Sítio de Pai Adão iniciou suas atividades. "Até onde nós sabemos, foi o primeiro de Pernambuco", conta o atual babalorixá da casa, Manoel Papai, que fala com a propriedade de quem mapeou o candomblé no Estado, em 2002, e descobriu mais de cinco mil terreiros em funcionamento àquela altura. 

Papai conta que tudo começou com uma negra que veio da Nigéria, Inês Joaquina da Costa. Mas foi sob o comando de Felipe Sabino da Costa, o Pai Adão, que o terreiro ficou nacional e internacionalmente conhecido. Descendente da quarta geração do famoso líder espiritual, ele não cuida somente de agradar e atender aos desígnios dos orixás. Administra também uma comunidade de 66 pessoas, quase todas da mesma família, que moram ao redor do terreiro. "Todo pai de santo é também delegado, juiz, médico, conselheiro."

No terreiro de Pai Adão, não tem caboclo, nem mestre, nem preto velho. Só orixás são cultuados. "Ao contrário de mais de 80% dos terreiros daqui, que são mistos", conta. De nação nagô, a casa tem Iemanjá como patrona. E só pratica o amor "pelo próximo, pelos orixás e pela natureza". Segundo o babalorixá, existem três tipos de oferenda aos santos no candomblé: a animal, a mineral e a vegetal. "Cada uma tem sua ocasião. Mas as folhas são usadas para tudo dentro da casa."
Além de muitos filhos, até Gilberto Freyre foi um deles, o terreiro tem uma iaquequerê ou mãe pequena e tem os ogãs, cada um com uma função: uns tocam, outros lidam com as plantas sagradas, outros cuidam das oferendas. "É tudo muito organizado. Não tem nada a ver com catimbó ou malefício. Magia negra não veio da África. Não é religião. É arma e fonte de renda do covarde. Ninguém precisa colocar uma galinha preta na esquina para fazer mal aos outros. O verdadeiro ‘trabalho’ se faz no pensamento."
Segundo Manoel, cada dia da semana é de um orixá. "A segunda é de Exu; terça é de Odé e Ogum; quarta é de Xangô e Iansã; quinta de Oxum e Nanã; sexta de Oxalá e sábado de Iemanjá." É obrigação do terreiro festejá-los. "Em abril, tem a festa de Ogum. Em junho, a de Xangô. Em julho, a de Oxum, em outubro, a de Oxalá e em novembro, a de Iemanjá."
Nessas ocasiões, a comunidade inteira se envolve. Mas nem todo mundo é filho da religião. "Tem até evangélico aqui na comunidade. E a gente se respeita", conta Maria da Conceição Costa Nascimento, 50 anos, sobrinha de Manoel Papai e ekedi de Oxalá, "uma espécie de zeladora, sabe?". Segundo ela, é tradição levar todo recém-nascido aos pés de Iemanjá assim que chega da maternidade. E se alguém adoecer, é Manoel Papai que "chega junto". Mas no dia a dia, é cada um para um lado. "Só quem vive de santo é babalorixá. O resto tudo tem que trabalhar", simplifica Valfrido José da Silva, 97, filho de Ogum e um dos mais antigos moradores daquela vila.
Duas gerações abaixo dele, Ivson Dolum, 27, endossa. "Não vivo aqui, mas pertenço a esta casa, onde nasci e me criei. No futuro, é a minha geração que vai tocar o terreiro. Meu nome e minha identidade são o candomblé."
Mãe Valda, do terreiro Ilê Asé Sango Ayrá Ibonã, em Pirapama, Cabo de santo Agostinho, não achou a vocação para o candomblé em sua árvore genealógica. Foi escolhida pelos santos. "Às vezes, fico achando que fui abduzida", brinca a líder espiritual que há três anos inaugurou seu terreiro numa belíssima casa, antiga sede de um engenho de açúcar pertencente ao Barão de Pirapama. "Até para honrar as origens do imóvel, cultuamos, além dos orixás, a Jurema e os pretos velhos."
Terreiro da nação gueto, cujo orixá é Xangô, a casa tem muitos filhos, mas nenhum morador. Gente para cuidar dos orixás e de suas muitas exigências, no entanto, nunca falta. "Logo pela manhã, é preciso consultar os búzios para saber quem está no comando da casa. E respeitar suas vontades", conta Valda, que garante: a ligação que se estabelece entre os orixás, a mãe de santo e seus filhos é muito forte e não costuma respeitar fronteiras físicas. "Se eu mexer no altar de um santo, não demora para alguém ligar, do outro lado da cidade, perguntando o que aconteceu na casa."
A melhor, aliás, pior prova disso foi o dia em que um dos tambores caiu inexplicavelmente do lugar, bem no meio do terreiro. "Passei muito mal. Quase morro. E depois que conseguimos resolver tudo, recebemos várias notícias ruins. Muitos filhos sofreram."
A casa está aberta às terças, quartas e quintas até as 15h e, no sábado, o dia todo. Festa também não falta. Em maio, tem a do preto velho; em julho, a de Xangô e Oxum; em agosto, a de Exu, pombagira e cigana; em outubro, a das crianças; em novembro, a da mestra Cacilda; e, para encerrar o ano, tem a festa de Iemanjá, em dezembro. "Ficam falando por aí que o que eu faço é macumba. Sabe o que é macumba? É um instrumento musical. Que mal há nisso? Se macumba é alimentar um faminto, orientar quem precisa e ajudar quem está desesperado, sou macumbeira com orgulho." Respeito é bom, avisa Valda, e todo mundo merece.

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